Dóci Papiaçám di Macau, a doce forma de estar em palco
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2. A regra de quebra-regras. O elemento chinês e a multimédia.
Como disse, o legado deixado ao grupo foi a língua que deveríamos proteger, a língu di genti antigo e a comédia do slapsitck. Sem embargo, o que fazer, quando a assistência entendedora do Patuá começar a diminuir a ponto de comprometer a viabilidade de um espectáculo? Como fazê-lo, se ninguém entre nós tinha preparação técnica para ir mais longe? Desde já, enquanto esperávamos por um mestre, íamos fazendo aquilo que sabíamos. Pouco importava, pois nada tínhamos a perder.
Era altura de desenvencilharmos das “amarras” do tradicional e sermos pragmáticos, como bons macaenses que somos e a quebra de regras foi inevitável.
Em 2000, assistimos a primeira “prevaricação”. Começámos a ter actores chineses nos papéis também chineses, como na peça Pápi Tá Ferado!, em que fizemos uma parceria com uma companhia tradicional chinesa Hiu Kok, com resultados francamente positivos. Ao arrepio de muito bom e conservador macaense, o cantonês passou a ter presença no nosso teatro e pela primeira vez tivemos legendagem também em chinês. Contudo, a “urticária” sentida pela comunidade mais tradicional tinha alguma razão de ser. “A única coisa que é genuinamente nossa, tem de ser partilhada com outros?!” queixava-se. Todavia, como retratar Macau foi sempre a nossa função, o elemento chinês não podia ser ignorado, sob pena de todos os enredos da comédia macaense fossem compartimentos estanques, guetizados, com todas as consequências negativas para a imagem da comunidade. O elemento chinês teria que integrar o novo teatro macaense, agora reinventado por necessidade das circunstâncias. Nunca mais o deixámos, a partir daquele ano. Anos depois iríamos congratularmo-nos com a decisão então feita, como referirei adiante.
Com o sucesso do teatro assim “diferente”, ousámos ir mais além das suas fronteiras. Convenhamos que todos que assistem a um espectáculo de patuá, não o fazem pelo simples amor à cultura e ao vetusto crioulo. Fazem-no pela simples razão de quererem rir, de passar um serão divertido, na companhia dos seus e dos amigos. O entretenimento assim entendido, abriu porta para outras visões e estratégias de actuação.
A introdução da multimedia no teatro, exibindo-se na noite do espectáculo, fotografias manipuladas de personalidades locais em contextos hilariantes, foi uma novidade e bem aceite. Mas isto era apenas prelúdio de algo mais ousado: a videografia.
Em 2006, fizemos o nosso primeiro filme “a sério” parodiando Bin Laden, que teria sido capturado em Macau, onde se refugiara nos labirintos da Guia. Desde esse ano a componente videográfica passou a fazer parte do espectáculo de Patuá, pois até no vídeo, a língua veicular era maquista.
3. Nova viragem: sátira no terra-a-terra.
Também em 2006 iniciou-se uma nova era para o grupo. A experiência então conseguida permitiu que afinássemos o nosso tom de sátira aos bons costumes, num contexto especial de Macau, que vivia os primeiros tempos da RAEM. Desde esse ano, não voltámos mais para os temas a resgatar memórias do passado. O momento era o presente e os problemas sociais
também. A assistência de então identificava-se melhor com a piada criada nessa época. A peça Vila Paraíso desse ano foi abordar então temas como o desmantelamento dos bairros antigos, o novo rico oriundo do Continente, que sem conhecer Macau, compra e dispõe de tudo para satisfazer um apetite por dinheiro fácil e o sentido de pertença. A Região Administrativa Especial inaugurava no ano anterior o primeiro casino após o fim da era do monopólio de jogo e novas expectativas de enriquecimento se criaram, especialmente no sector do imobiliário, alimentando a ganância de muitos.
Depois vieram outros trabalhos. Parodiámos a Saúde Pública (Cuza, Dotôr? – 2007), gastronomia (Sabroso, nunca? – 2008), os advogados (Letrado Chapado – 2009), com os pandas (Qui Pandalhada! – 2011), as eleições legislativas (Amochai di voto – 2013), a habitação (Vivo na úndi? – 2014). O cunho satírico agudizou-se, e os temas, cada vez mais próximos da realidade do dia a dia. Dóci Papiaçám di Macau passou a ser um verdadeiro arauto do povo, personificando o anónimo ou então a camada social “que tem muito a dizer sobre as coisas aparentam estar bem”.
Com esta viragem de temática, alcançou público nunca imaginado. Chineses começaram a interessar-se nos nossos trabalhos, assim também as autoridades, as quais tendo consciência da sátira, se associavam à gargalhada geral. Temos registos de que até visitantes vindos de Hong Kong, ou do Continente, assistiam aos nossos espectáculos. Dóci Papiaçam di Macau, embora teimando em se situar no campo do amadorismo, no estrito sentido de que a sua actividade não é profissão de ninguém, deixou para trás a ingenuidade de outrora. A consciência do grupo foi dando passos no seu amadurecimento, e deu um decisivo para a frente: somos amadores com espírito profissional, pois fazer rir exige esta alma, e tudo terá que parecer fácil.
A produção videográfica tomou outros rumos. Filmes satíricos como Panchico, Onçôm, Jaime Bronco e tantos outros.
O Teatro e a Videografia, duas facetas de um único espectáculo, algo inadmissível para uns, até ridículo para outros, deram não obstante muito a ganhar ao grupo com um crescente público frequentador. Se tudo é “tão mau” porque a assistência está bem presente todos os anos?
Sem embargo, havia ainda algo que ainda não tínhamos então alcançado. Se atentarmos às peças tradicionais do teatro macaísta, verificamos a presença do elemento musical, tão ao estilo da revista portuguesa.
4. A linguagem universal da música no nosso palco.
A sátira ganharia outro tom com música, esta língua, despertadora de sentimentos incontáveis, mas universal na sua comunicação. Efectivamente tínhamos no início uma parte musical nos nossos espectáculos, muito graças aos velhos músicos que também se juntaram a nós no início. Os membros dos Rockers, que abrilhantaram festas, soirés, chás dançantes, clubes nocturnos nos anos 50-70, fizeram parte da primeira “fornada”dos Dóci. Contudo, a cruel idade tratou de afastar todos destas iniciativas divertidas, e a nova forma de espectáculo que adoptámos tornou cada vez mais difícil o seu cabimento.
O elemento musical “saiu” assim do teatro, para depois regressar só em 2016, com a peça Unga Chá di sonho. A tecnologia dos computadores e do software de produção musical, abriu-nos portas para um novo campo de criatividade. Começámos a criar música, canções e arranjos originais para o Teatro, que seriam assim executadas em contextos próprios na peça, dando um
novo paladar ao espectáculo. Sucederam-lhe outros trabalhos mais recentes como Lorcha di amor (2022), Cha-chau La-lau di Carnaval (2023), Unga istrêla já chegâ (2024). E com isso, novos talentos se descobriram, sendo boa parte deles da camada mais jovem.
Não é ainda o Musical que temos em mente mas seguramente, um teatro e um espectáculo mais abrangente, no que respeita ao entretenimento.
E perguntamos agora, para o quê evoluímos?
5. O Teatro macaísta, uma plataforma polivalente de culturas e de divulgação do Patuá.
Com Dóci Papiaçám di Macau o teatro macaísta foi reinventado. Quebrando regras, levámo-lo para onde ninguém imaginava ser possivel, a público que lhe era tradicionalmente alheio. Incluímos elementos que lhe eram estranhos, vagueámos por mares nunca antes navegados. A “revolução” que fizemos teve o condão de colocar a palavra “Patuá” na boca do curioso por coisas macaenses. Com respeito por todos cultores do maquista que nos precederam, julgo justo dizer que renovámos o interesse pelo crioulo. Ele passou a ser tema de discussão académica, tese de mestrado e de doutoramento.
Mas é a capacidade inclusão de culturas a mais valia dos Dóci Papiaçám di Macau. O seu teatro ao conquistar o público chinês tornou-se motor importante para o seu reconhecimento como Património Cultural Imaterial Intangível, primeiro da RAEM, depois da República Popular da China. A razão de ser desse reconhecimento é a consideração de que o Teatro é uma plataforma “onde cabem todos”, ou seja, tudo que de cultural pode ser Macau.
O Teatro exprime o que o Patuá é na sua essência, uma fusão harmónica de cultura e de língua, numa terra tão singular que é Macau.
Muito se podia dizer mais o que move Dóci Papiaçám di Macau. Talvez através desta ideia, que é nosso mote: “Patuá é a alma do grupo e Macau, a sua justificação