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Tributo a Filipe de Sousa

FILIPE DE SOUSA – a sua Vida, a sua Obra

(1927 – 2006)

Pianista, Compositor, Maestro, Investigador – um  Homem da Cultura

Membro do Conselho Consultivo e Benemérito da Fundação Jorge Álvares.

Acreditou no projecto. Doou à Fundação, ainda em vida, em 2005, a casa e a propriedade de Alcainça, onde viveu os seus últimos anos, a sua valiosa e diversificada biblioteca, as suas importantes colecções de obras de arte, de discos e de manuscritos musicais, o seu espólio musical próprio.

Um vulto da Cultura, uma figura cívica, e, também, um amigo de Macau.

A Música levou-o muitas vezes a Macau. Privou e foi amigo de muitas personalidades ligadas à cultura e às artes do território, entre elas, e para apenas nomear a ligação à música, o Padre Áureo de Castro (Academia de Música S. Pio X) e o Maestro Simão Barreto.

Em 1987, por ocasião das comemorações do XXV aniversário da Academia de Música S. Pio X, organizou em Macau uma exposição de Manuscritos e Edições Musicais, patrocinada pelo Instituto Cultural de Macau, cuja apresentação, por ele escrita (ver Boletim “Comunicações” n.º 14, 2007, edição especial) demonstra bem o interesse e o carinho especial que sempre dedicou ao Território.

Ara além de outras informações sobre a sua vida e a sua obra, procurámos reunir um conjunto de depoimentos de grandes amigos, de antigos colegas, de outros músicos, escritores, admiradores da sua obra e da sua pessoa. Da leitura destes depoimentos fica um registo da sua vida, da sua obra, da pessoa extraordinária que foi o Maestro Filipe de Sousa.

Nasceu em Lourenço Marques, Moçambique, a 15 de fevereiro de 1927.

Deu início aos seus estudos musicais ainda em Lourenço Marques quando era criança, aos seis anos de idade, tendo, como o próprio considerava, herdado o talento musical da mãe, que tocava bandolim, e aprendido as primeiras notas musicais com o pai, guitarrista e compositor. Em casa do avô conheceu o piano e a grafonola, instrumentos que lhe despertaram o gosto pela arte dos sons.

Continuou os seus estudos posteriormente, em Lisboa, no Liceu Camões e no Conservatório Nacional, onde se diplomou em Piano, com Abreu Mota, e em Composição, com Jorge Croner de Vasconcelos.

Licenciou-se simultaneamente em Filologia Clássica na Faculdade de Letras de Lisboa.

Durante algum tempo dedicou a sua actividade à carreira de intérprete – pianista – tendo-se empenhado especialmente na divulgação de autores contemporâneos.

Em 1954, graças a uma bolsa do governo de Moçambique para estudar regência de orquestra no estrangeiro prosseguiu a sua formação na Alemanha e na Áustria, diplomando-se em 1957 na Staatsakademie de Viena, onde foi aluno de Hans Swarowsky e colega de Zubin Mehta e de Cláudio Abbado. Estudou também em Munique, com Mennerich e F. Lehmann, e em Hilversum, com Alberto Wolf.

Foi: membro fundador do Conselho Português de Música, da Juventude Musical Portuguesa, do Grupo Experimental de Ópera de Câmara de Lisboa e do Grupo Português de Bailado; presidente da Direcção e da Assembleia-Geral do Sindicato Nacional dos Músicos; professor do Conservatório Nacional de Lisboa (composição) e da Universidade de Luanda; membro por várias vezes do júri dos Concursos Internacionais de Piano “Vianna da Motta”; director do Serviço de Música da RTP.

Para além da sua actividade como intérprete, a quem se ficaram a dever numerosas primeiras audições em Portugal de obras de Bartók, Hindemith, Sravinsky, Schoenberg, Berg ou Milhaud, e como maestro, Filipe de Sousa dedicou-se também, com especial devoção, à investigação, divulgação e edição do património musical, designadamente do português. Os resultados do seu trabalho de investigação junto de arquivos e bibliotecas concretizaram-se na descoberta e na recuperação de dezenas de obras de música portuguesa, especialmente dos séculos XVIII e XIX.

Como investigador fez ressurgir dezenas de obras de compositores antigos portugueses e foi responsável pela descoberta, estudo e reposição moderna de importantes obras da história da música portuguesa, como António Teixeira e António José da Silva – As Variedades de Proteu, Guerras do Alecrim e da Mangerona – e editou para a colecção Portugaliae Musica da Fundação Calouste Gulbenkian, obras de Domingos Bontempo, Sousa Carvalho e Francisco de Lacerda.

Como maestro, para além de Portugal, onde foi convidado frequentemente a dirigir a Orquestra Sinfónica Nacional de Lisboa, actuou no Brasil, na África do Sul e na U.R.S.S.. No Brasil dirigiu em primeira audição mundial a cantata “O Caso do Vestido” (Carlos Drummond de Andrade) de Camargo Guarnieri, autor que veio posteriormente a dedicar-lhe a sua 6ª. Sinfonia.

Repartida por vários géneros musicais, Filipe de Sousa conferiu na sua obra uma especial relevância à voz, tendo sido a poesia a principal fonte de inspiração da sua obra musical.

A maior parte das suas obras musicais baseia-se numa criteriosa selecção literária, de Camilo Pessanha a Fernando Pessoa, de Garcia Lorca a Paul Éluard, de Rilke a Langston Hughes, etc..

Na obra de Filipe de Sousa assume predominância o conjunto de melodias para voz e piano (33, à data conhecidas) sobre poemas de Pessoa, Ricardo Reis, Camões, Pessanha, Rilke, Éluard, Lorca, entre outros, das quais uma parte significativa foi orquestrada pelo autor. Da sua produção instrumental destacam-se o Quinteto de sopros, a Sinfonietta e uma Suite de Danças, ambas para orquestra, bem como peças a solo para violino, viola, violoncelo e clarinete. No repertório pianístico têm lugar uma Sonata e duas Sonatinas.

Morreu, em Lisboa, vítima de doença prolongada, no dia 22 de novembro de 2006, com 79 anos de idade.

Depoimentos de Amigos

por António Valdemar, jornalista, da classe de Letras da Academia das Ciências

Retrato incompleto de um amigo completo

Há situações terríveis e que, muitas vezes, é difícil aceitar: a morte de um familiar ou de um amigo com quem existia uma relação profunda quotidiana. Filipe de Sousa tem sido, para mim, um destes casos. Mantivemos um convívio de mais de meio século de inalterável amizade. Conheci-o quando ele trabalhava, como secretário-geral, no Círculo de Cultura Musical, fundado e dirigido por Elisa de Sousa Pedroso que, durante sucessivas décadas, exerceu uma acção da maior importância, não apenas em Lisboa mas através de todo o País.

Todavia, nos anos 50, – quando inicio o meu contacto pessoal com Filipe de Sousa – Elisa Pedroso já se encontrava bastante marcada pelos anos. Muitas das iniciativas do Círculo de Cultura Musical já eram sugeridas e concretizadas por Filipe de Sousa, um jovem que fizera, com as mais altas classificações o Curso de Piano do Conservatório e, simultaneamente, se licenciara em Filologia Clássica, na Faculdade de letras de Lisboa.

Filipe de Sousa tinha um horizonte intelectual fora do comum e um desejo imenso de saber e conhecer cada vez mais. Tanto no Conservatório como na Faculdade de Letras integrou uma geração de figuras que se tornaram, aliás como ele próprio, de referência obrigatória. Completou a formação musical na Alemanha. Tirou os cursos que necessitava para se afirmar como pianista, compositor e maestro. Sempre com altas notas. Conviveu com grandes personalidades, da música, das artes plásticas, da literatura. Ao regressar a Portugal ingressou na Rádio Televisão Portuguesa. Foi chefe do Departamento de música. Era de uma competência e idoneidade exemplares. Produziu numerosos programas para a divulgação de obras dos nomes mais representativos da História da Música em Portugal. Leccionou no Conservatório. Pertenceu ao sector musical da Gulbenkian.

Se a sorte em várias circunstâncias lhe foi adversa, em muitas outras circunstâncias, Filipe de Sousa possuiu meios de fortuna para viver a vida que lhe apetecia e se rodear de tudo quanto lhe interessava; um extraordinário acervo musical; quadros e outras obras de arte de notáveis autores portugueses e estrangeiros; e, ainda, uma vasta e diversificada biblioteca de clássicos e modernos portugueses, italianos, alemães, ingleses, espanhóis e franceses que abrangia, fundamentalmente, a música, a literatura, as artes plásticas.

Multiplicavam-se as edições raras. Possuía a colecção – quase integral, o que é um prodígio – dos livros, opúsculos e panfletos de José Agostinho de Macedo; todas as edições de António José da Silva, uma das suas paixões; todas as edições e a maioria das traduções de Cesário Verde, Camilo Pessanha e Fernando Pessoa. Não hesitou – posso testemunhá-lo – em pagar largas centenas de contos, ou já milhares de euros por livros autografados por Fernando Pessoa, os poucos que publicou em vida; e alguns da biblioteca de Pessoa que apareceram em leilões e em alfarrabistas.

Também foi um mecenas: pagou a edição de livros de música de reconhecido mérito. Correndo sérios riscos – e houve alguns lastimáveis – colocava, sem restrições, à disposição de investigadores, em especial jovens, livros, manuscritos, e partituras da sua colecção, repleta de espécies únicas.

Conservou Filipe de Sousa, amizades que vinham do Liceu Camões, do Conservatório, da Faculdade de Letras, da Televisão e muitas outras que surgiram no decurso da vida. Um dos seus maiores prazeres era o convívio. No seu escritório no Chiado constituiu uma tertúlia que reunia, em cada dia, consoante as afinidades electivas – que seleccionava com extremo cuidado – os amigos que estimava e eram de todas as opções políticas e religiosas. Nesses lautos almoços, que se prolongaram por mais de 20 anos e avançavam pela tarde com vinhos admiráveis e whiskies excelentes, apenas havia uma limitação: não abordar questões de natureza partidária que pudessem ferir susceptibilidades. De resto, falava-se de tudo e de todos. No entanto, Filipe de Sousa também fazia questão de impedir alusões à vida privada de quem quer que fosse. Estas as únicas atitudes drásticas que assisti – quando houve motivo para isto – do mais aberto e tolerante dos amigos.

Considero um dos privilégios da minha vida ter participado, com assiduidade, nessa tertúlia, de opulenta gastronomia portuguesa e à qual deu o nome de Mandíbula de Aço. Mas, além disto, sucediam-se os encontros, nas nossas casas, em casa de amigos comuns, em inúmeras viagens dentro e fora do País. Para ouvir um concerto. Para ver um Museu ou uma exposição. Para a descoberta de uma paisagem. Para ir a um restaurante famoso. Para sentir as grandes e pequenas coisas que dão sentido e plenitude à vida.

A doença progressiva e a morte inevitável de Filipe de Sousa abalaram-me, profundamente. Decorrido um ano, ainda, não me consigo habituar à sua ausência. Sempre que recordo o convívio de Filipe de Sousa, reconheço que, sem o calor humano da sua presença e a irradiação cultural do seu espírito, fiquei muito mais pobre. Também morreu uma parte de mim mesmo.

Novembro de 2007

por Constantin Sandu, pianista

Conheci Filipe de Sousa em Maio de 1991, quando fiquei hospedado em sua casa por ocasião do Master-Class de Sequeira Costa na Fundação Gulbenkian. Desde o início fiquei fascinado com a sua personalidade – uma vastíssima cultura, um gosto requintado e um sentido de humor fora do vulgar. Talvez por sentir na altura falta da minha família ainda a um nível agudo, pois tinha–me afastado de Bucareste somente sete meses antes, Filipe de Sousa lembrava-me sempre o meu pai. A sua residência, o Casal de S. Bernardo (o proprietário tinha um grande carinho e admiração por este santo), situada num lugar de sonho, nas colinas entre Malveira e Mafra, perto de Alcaínça, era grande e recheada de pinturas e esculturas, pois uma das paixões de Filipe de Sousa era a arte plástica moderna e contemporânea. Não sei se haverá muitos artistas plásticos portugueses actuais de relevo que não fossem representados com pelo menos uma obra naquela casa. Na sala imensa, perdiam-se dois pianos de cauda, um deles Steinway modelo C; por outro lado, a biblioteca e a discoteca eram notáveis em quantidade e qualidade.

Estive hospedado várias vezes no Casal de S. Bernardo, pela última vez em Julho de 2004, quando passei lá um fim de semana, no intuito de recolher elementos para a minha tese de doutoramento sobre a música portuguesa para piano, tendo-lhe nela dedicado um capítulo. As estadias foram sempre muito agradáveis; a simpatia, a elegância e o bom humor completavam o refinamento e a elevação cultural e espiritual que o caracterizavam.

O seu estilo musical cristalizou-se com base em influências de Stravinsky, Bartok, Hindemith, adquirindo uma linguagem própria, funcional na essência, que (tal como o próprio afirmava) não pode ser classificada como neoclássica, muito menos impressionista. A principal fonte de inspiração foi a poesia (também devido à sua formação literária), constatando-se daí uma preponderância para a música vocal, sendo poetas como Camilo Pessanha e Fernando Pessoa dos mais próximos da sua alma. Não aderiu às inovações da segunda parte do século XX, nem ao fenómeno Darmstadt, contudo, estava sempre interessado no que era mais actual e moderno na composição, tentando perceber as razões e as motivações íntimas dos vanguardistas.

No entanto, ficou sempre com dúvidas acerca da música de vanguarda e pensava que havia uma “destrinça a fazer entre uma peça musical com um conteúdo humano, de expressividade (que eu acho que vem através do canto; e canto é melodia), ou então um objecto musical (acho que é a melhor definição que posso dar a certa música, com interesse, naturalmente, mas esvaziada de conteúdo expressivo, de um conteúdo humano); podem ser objectos musicais lindíssimos, que me podem fascinar, mas que não representam para mim uma obra verdadeiramente humana, uma peça musical. Porquê? A anulação do sentido tonal das músicas. Partindo de um princípio genérico e básico (algo na linha das ideias de Hindemith e da obra Fundamentos da música na psicologia humana de Ansermet – n. a.), em toda a música existem focos tonais, porque há uma razão natural, física e ninguém pode transformar a própria natureza. O som base com os seus harmónicos é um mundo indestructível; por outro lado, há um mundo indestructível que é a nossa formação física, o sistema auditivo: o receptor está feito para receber o som e os seus harmónicos todos; foi nesta base que se criou e se desenvolveu o sistema europeu de harmonia, que evoluiu com o tempo e finalmente desaguou na atonalidade; há um percurso natural no mundo sonoro, mas o receptor continua a ouvir numa base tonal. Por isso, estou convencido que no futuro haverá um retorno à tonalidade, porque nós ouvimos funcionalmente, é a nossa base natural, física.”

Esta citação releva o seu pensamento musical e explica o facto de ter sido, talvez, um dos compositores mais conservadores da sua geração, pese embora as suas experiências sonoras mais arrojadas, que existiram, mas sem o terem conquistado de maneira definitiva. Por essas e por outras (parafraseando-o), Filipe de Sousa pode ser considerado um dos mais importantes compositores portugueses do século XX e foi, sem dúvida, uma das personalidades mais cativantes da música portuguesa.

Julho de 2007

por David de Almeida, artista plástico

Conheci o Maestro Filipe de Sousa nos anos 80. Fomos apresentados nos jardins do Palácio dos Coruchéus, onde então tinha atelier, quando se discutia um projecto ligado a um livro-objecto que incluiria as Artes Plásticas, a Gastronomia, a Literatura e a Música, para o qual fui arrolado.

Tratava-se de um projecto destinado a um laboratório de produtos farmacêuticos que se foi discutindo à volta da mesa – como era inevitável – mas que ficou pelo caminho, abortado pelo patrocinador.

O que não ficou pelo caminho, o que perdurou, foi uma amizade com base na admiração e no respeito mútuos ao longo de mais de 20 anos.

Almoçava com a frequência possível na Mandíbula de Aço, última tertúlia do Chiado nas palavras do Professor Juvenal Esteves, onde conviviam – nem sempre de forma tão pacífica como a ingenuidade do Maestro o levava a crer – mesários que podiam chegar tanto de Aveiro como de Lisboa, do Brasil ou de Macau, arrancados aos mais inesperados quadrantes políticos (recordo com saudade a última tarde, última para todos nós, com o Maestro Camargo Guarnieri).

Também à mesa, a sua cultura e o seu humor não davam lugar a quebras de ritmo na conversa.

Alguns dos convidados, pela primeira vez na roda, ficavam fascinados com as impossíveis histórias da tia Eulália do Maranhão ou do crocodilo com que o Filipe teria cohabitado numa residência na zona das Amoreiras, para onde o animal fora levado ainda bébé e que ali crescera até ter atingido cerca de três metros. Por vezes, quatro, dependia da inspiração do momento.
Teria saído por uma janela, içado por um guindaste.

O mais difícil era depois convencê-los de que se tratava de uma brincadeira, tais eram os pormenores com que enroupava estas encenações.

Em 1987 comprei um terreno em Alcainça e aqui nos deslocámos para lhe dar a conhecer a terra em questão, pois o Filipe insistia em ver o lugar, talvez levado pelo entusiasmo com que lhe falava desta região de vulcões extintos (há muito tempo, felizmente).

Cerca de uma semana depois desta visita, o Filipe comprava uma propriedade que confinava com a minha, iniciando a construção do Casal de S. Bernardo, que daria corpo ao seu sonho: ter um lugar que albergasse o seu acervo musical, os seus discos e livros. O sítio onde em sossego escrevesse a sua obra, onde libertasse os livros amontoados na casa de Cascais, os discos e peças de colecção dispersos pelas casas de alguns amigos, o espaço onde pudesse fruir a sua colecção de arte, onde convidasse os seus amigos para tocar ou ouvir música, onde pudesse com eles ensaiar em boas condições acústicas.

Assim foi acontecendo não com a frequência com que o sonhou, mas da forma que lhe foi sendo possível.

Para aqui se foi transferindo também um pouco do espírito da Mandíbula de Aço.

Dadas as minha relações profissionais com Espanha, começou a acompanhar-me nas viagens de trabalho a Madrid e a Barcelona, visitando galerias e museus, dando início à sua colecção de Arte Contemporânea Espanhola – de Gravura na sua maioria, obras emblemáticas e raras algumas delas. Chillida, Miró, Rueda, Picasso, Sempere ou Tapies, são alguns dos Artistas consolidados por um percurso reconhecido, mas não lhe passaram ao lado as gerações mais jovens como Barceló, Broto, Ciria, Lamazares, Saskia Moro, Sicília, Soledad Sevilla e tantos outros.

Em Madrid instalei o Maestro no Hotel Liabeny – eu frequentava-o desde a sua abertura nos anos 70 – donde nunca mais deixou de ser cliente e onde era tratado e estimado como pessoa de família, como o Artista que era, um hóspede especial.

Situado na Plaza del Carmen, estava a dois minutos da livraria Espasa-Calpe na Gran-Via onde comprava os livros que mais lhe interessavam e a cinco minutos da FNAC ou do El Corte Inglés onde comprava os discos que encheriam as malas que levara vazias (normalmente viajávamos de carro) apenas para isso: trazer livros e discos.

Este acervo tem uma marca muito pessoal, uma peça completa a outra, um quadro pode ser o complemento de um livro, uma gravura pode ser uma viagem, um livro uma procura de meses.

Era seu objectivo manter intacto este núcleo tão pessoal, para que assim pudesse ser visto e consultado.

Quanto a mim, uma das razões, a principal razão, era a de que não se importaria de revelar – talvez até o desejasse – após a morte, aquilo que sempre quiz preservar em vida – a sua intimidade, ou melhor, o seu íntimo.

Um dia manifestou o desejo de deixar os seus bens a uma fundação ligada a Macau. Nos últimos anos deslocara-se muitas vezes ao Território por razões profissionais, ou simplesmente por gostar de por ali vaguear em passeios curtos (esperaria deparar-se com Pessanha ao dobrar de uma esquina?). Ali me acompanhou durante algumas viagens de trabalho apenas para estar, para visitar amigos, para sentir os cheiros ou para ficar de olhos brilhantes e sorriso largo perante a cozinha chinesa.

Admirador da obra e da personalidade do último Governador de Macau, perguntou-me um dia o que sabia eu da Fundação Jorge Álvares. Dei-lhe as informações de que dispunha, entreguei-lhe uma colecção do Boletim Informativo de Fundação e, alguns meses depois – reflectiu muito sobre a atitude a tomar, o que nem sempre era habitual no Maestro – pediu-me, sabendo-me um indefectível do General Rocha Vieira, se eu podia organizar um encontro privado, o que veio a acontecer na minha casa, em Alcainça.

E foi assim que, em paz e por sua vontade exclusiva, foi iniciado o processo de doação de todo o seu património à Fundação Jorge Álvares.

Partiu descansado, com a noção do dever cumprido.

Por aqui fiquei eu mais só, tinha à mão um amigo que era um sábio e que partiu deixando uma mão cheia de promessas por cumprir.

A mais importante foi a de que viveria até aos cem anos, pois provinha de uma família de macróbios. E esta eu não lhe perdoo.

Alcainça, 24 de Junho de 2007

por Elsa Saque, cantora lírica

in memoriam
“A memória é um museu, uma variedade imensa de estátuas e quadros; uns, animados pela dor, outros, pela alegria. E todos surgem ao luar que encanta a noite do Passado. Surgem, velados de uma ternura dolorida. que é uma névoa de lágrimas não choradas .”

Teixeira de Pascoaes, Livro de Memórias

Evoco hoje uma figura marcante da minha juventude e que, ao longo dos anos, comigo se foi cruzando nestas veredas a que chamamos vida. Muitas recordações, factos esparsos, visões fugazes por vezes, enfim, momentos que constroem uma longa e sólida amizade, e a perpetuam ainda agora através da saudade.

Meu Professor no Conservatório, Filipe de Sousa começou por moldar a minha adolescência; generoso, fez-me acompanhá-lo no meu início de carreira – estivemos juntos nos meus primeiros recitais, na preparação e representação de óperas portuguesas do séc. XVIII, que o Maestro, de personalidade ecléctica, ávido de conhecimento, recuperou, ao longo dos anos, em diversos Arquivos do País. Acompanhei-o várias vezes em tournées, por esse Portugal fora, dando a conhecer em terras, tantas vezes esquecidas, uma boa parte do nosso repertório musical, ópera e canção, abrangendo diversas épocas.

É que, entendia o Maestro e compreendo eu agora, ser Professor não é apenas transmitir conhecimentos; mais do que isso, é saber acompanhar o início de carreira dos seus alunos, incutir-lhes confiança, confrontá-los com o público, conduzi-los como uma espécie de Pai. E assim nasceu uma convivência prolongada e consequentemente um relacionamento humano, uma camaradagem de onde nunca esteve ausente um grande respeito e uma profunda admiração.

Director do Serviço de Música da R.T.P., manteve o raro talento de conciliar essas funções institucionais e não esquecer – ao contrário de muitos -, aquela solidariedade bonita e generosa com os seus antigos e próximos colaboradores, conciliando com sabedoria tudo o que de bom a vida pode oferecer-nos. É sobejamente conhecido o seu sentido de humor, tão peculiar, a sua riqueza espiritual e afectiva, o modo como aconchegava a alma dos que amava com aqueles pequenos mimos de que só os seres sensíveis captam o sentido profundo. Aquelas prendinhas com que nos distinguia, apenas comparáveis à flor silvestre que, arrancada de entre as pedras, colocamos nas mãos de quem nos é particularmente querido.

Depois, quem dos seus próximos não recorda o modo caloroso e informal como recebia os seus amigos na “Mandíbula de Aço”, onde reunia, na sua ânsia e curiosidade intelectual, personalidades das mais variadas áreas da nossa cultura? Brincava-se, é certo, esse sentido de humor a que já aludi nunca o abandonava, mas aprendia-se sempre, através do debate de ideias e da troca de conhecimentos.

Acompanhei-o igualmente e por diversas vezes ao Oriente, era sempre óptima companhia, com aquela jovialidade que todos lhe conhecíamos e reconhecíamos. Digamos antes, com a mesma ciência da vida manifestada no modo como soube superar os altos e baixos que o passar do tempo nos vai reservando.
Uma das últimas vezes em que estivemos juntos foi na inauguração de uma exposição numa galeria de arte; cantei, nessa altura, algumas das suas composições e como esquecer a força e o calor daquele abraço, a terminar um espectáculo, é certo, mas sobretudo a selar uma amizade cúmplice de anos?

Finalmente, uma tarde triste e chuvosa de Novembro, um grito de alma sufocado … até sempre, Maestro.

Estoril, Julho de 2007

por Fernando Serafim, tenor

In memoriam
Não era fotogénico, e não gostava muito de ser fotografado, mas tinha forte paixão pela fotografia – numa das nossas idas a Macau gastou um balúrdio em máquinas fotográficas – e foi grande amigo de um “mago” português da fotografia: Augusto Cabrita.

Irrequieto, inconstante, de feitio controverso, era por vezes de difícil convivência, porém sabia ser extremamente generoso, amigo do seu amigo, capaz de ajudar sempre que fosse preciso. Conheci-o pessoalmente logo que regressou da Alemanha, embora já o conhecesse de nome por ele ter sido co-autor, com o prof. Jorge Croner de Vasconcelos, dos programas das óperas das temporadas do Teatro Nacional de S. Carlos. Havia quem criticasse esses programas, porque os comentários desses dois músicos eram demasiados sucintos.

Criou-se entre mim e Filipe de Sousa uma enorme empatia. Convidou-me pouco depois do nosso primeiro encontro para com ele fazer concertos quer de música de câmara- foi ele o responsável pela apresentação em 1ª audição em Portugal de uma obra de Beethoven sobre poema de poeta português, apresentada no Palácio Foz- quer de música coral sinfónica (dirigiu o Requiem de Bomtempo, à memória de Camões, que pouca gente conhecia, na Igreja de S. Vicente de Fora), quer de óperas: as óperas minuto de Milhaud, quando desempenhava o cargo de director musical da RTP.

Apaixonado pelo séc.XVIII português, assumiu a pesquisa de grande parte do material musical dessa época, existente na biblioteca do Palácio Nacional de Vila Viçosa. Passou dias e noites na revisão de partituras de óperas, muitas delas fragmentadas e sem o texto incluído na música, como era o caso de óperas de António José da Silva, o judeu/António Teixeira, o que tornou o seu trabalho verdadeiramente ciclópico. Foi até Goiaz, bem no interior do Brasil, à sua custa, para analisar o material de partituras de óperas existentes naquela cidade. E assim trouxe mais obras desses autores. As Variedades de Proteu com a sua revisão e direcção musical, já tinham sido levadas à cena no Teatro da Trindade. Também se interessou pela oratória: é exemplo disso a revisão da Paixão de Almeida Mota, que foi gravada em disco pela Fundação Calouste Gulbenkian, sendo eu um dos intérpretes. E ainda pela música contemporânea: as gravações existentes provam-no bem.

Como compositor, foi mais fadado para a música de câmara do que para a sinfónica, tendo escrito muitas canções para canto e piano sobre poemas de poetas portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, alemães e americanos.

Natural de Moçambique, veio ainda jovem para a Metrópole, onde frequentou a Faculdade de Letras, tendo feito o bacharelato em Filologia Clássica e tirado o curso de piano e composição no Conservatório Nacional, após o que foi para a Alemanha, continuando lá os seus estudos de composição e de direcção de orquestra, obtendo os respectivos diplomas.

Casou com uma alemã, linda, que se sentia em Lisboa cheia de saudades de Munique. Não foi um matrimónio feliz.
Personalidade turbilhonante, não passava muito tempo no mesmo sítio: da RTP foi para Angola, voltando depois de novo para a RTP, e passado algum tempo tornou a embarcar para Angola, de onde teve que fugir, porque a situação no país era de permanente conflito. Foi professor no Conservatório Nacional e assessor da Dra. Madalena de Azeredo Perdigão no Serviço de Música da Fundação Gulbenkian e, também, director no Grupo de Ópera de Câmara (1ª tentativa para a profissionalização dos cantores portugueses, ideia de Madalena Perdigão. Infelizmente, o projecto durou pouco tempo).

Sossegou finalmente quando tomou conta do negócio que o tio lhe legou: a Casa Sousa. Comprou um terreno em Alcainça e aí construiu uma casa que é hoje pertença da Fundação Jorge Álvares, pois ele assim decidiu em testamento. É uma mansão com um património bibliográfico e musical valiosíssimo, com exemplares únicos. Nessa casa continuou a compor, embora em ritmo mais lento: surgiram as canções para barítono e conjunto instrumental e um quinteto de sopros, executado e gravado na Alemanha. Nos últimos tempos, fez a revisão de mais uma ópera da dupla Judeu/ António Teixeira (a partitura foi-lhe cedida por um amigo), cuja descoberta Filipe de Sousa revelou ao público numa conferência na Academia de Belas Artes de Lisboa, onde se contavam no público, para além de mim, cinco pessoas… No fim saiu comigo. Estava bastante triste!

Apoiou a publicação de livros como a biografia de Jorge Croner de Vasconcelos da autoria de Gil Miranda, e financiou a edição de partituras, sobretudo de Fernando Lopes-Graça, de quem se tornou um excelente intérprete e amigo.

Com Filipe de Sousa gravei em CD a 2ª série de Sonetos de Camões de Fernando Lopes-Graça e outro CD com obras suas sobre poemas de poetas portugueses e estrangeiros. A última canção com poema de Paul Éluard é-me dedicada.

Também com obras de Fernando Lopes Graça, apresentámos em Turim, num concerto promovido pela Universidade dessa cidade, sob os auspícios da cantora Carmélia mbar, (na mesma ocasião em que foram distinguidos com o grau de doutor “honoris causa” José Saramago e Mário Soares), as Canciones de Tierras Altas, sobre poemas de António Machado, em 1ª audição absoluta, que foram depois apresentadas em 1ª audição em Portugal, no Palácio Foz, no dia 26 de Janeiro de 1996.

Participou comigo num concerto em minha homenagem na Sala dos Reis do Mosteiro de Alcobaça, minha terra natal. Preenchemos o programa com obras suas. Foi um êxito.

Fascinado pelo Oriente, foi a Macau, e ficou maravilhado com essa cidade, estabelecendo forte amizade com o saudoso padre Áureo de Castro, fundador e director da Academia de Música de S. Pio X. Filipe de Sousa co-patrocinou uma série de concertos (um mini-festival) nessa Academia, em que convidou para intérpretes, por si acompanhados ao piano, as sopranos Elsa Saque e Filomena Amaro, o barítono José Oliveira Lopes e eu. Cantámos obras dele, de Lopes-Graça (em 1ª audição mundial a 2ª série de Sonetos de Camões e a versão completa da Clepsidra) e de Simão Barreto (compositor timorense e seu amigo, radicado em Macau), entre outros.

Com Elsa Saque, cantei igualmente em concertos no Palácio Galveias, em Lisboa e no Palácio da Bolsa, no Porto, com conjunto de câmara sob a sua direcção.
Com ele ao piano, cantei árias e duetos com Dulce Cabrita, nas comemorações do 2º Milénio de Virgílio, realizadas em Arganil; também com esta cantora, interpretámos, no Instituto Alemão, as Trovas de Francisco Lacerda, que Filipe de Sousa reviu (foram publicadas pela Fundação Gulbenkian).

Era igualmente um leitor compulsivo: devorava livros, sobretudo os que continham relatos de epopeias marítimas. Também escrevia poesia em estilo pessoano, mas nunca deu valor a essa sua faceta criadora. Fez uma excelente tradução dos sonetos eróticos de um poeta italiano, que me deu para rever, livro que iria ser publicado no final deste ano.

Um dia, num assomo de fúria destrutiva, quis rasgar algumas das suas canções, a exemplo de outros compositores como Lopes-Graça e de escritores como Kafka. Entre elas estava a bela melodia sobre poema de Camilo Pessanha Floriram por engano as rosas bravas. Eu disse-lhe: pode destruir tudo o que quiser, mas esta canção está a salvo porque tenho uma cópia em casa. Olhou para mim estupefacto, pois já não se lembrava de ma ter oferecido. Mais tarde, agradeceu-me por eu ter abortado aquele momento de desvario.

Seguia a preceito a máxima de D’Annunzio: “ Só os prazeres dos sentidos dão sentido à vida”. Gostava muito de fazer almoçaradas com os amigos, comendo-se e bebendo-se sempre bem, e até abriu uma cantina, adjacente ao seu escritório, para os empregados da Casa Sousa, a que deu o nome de “Mandíbulas de Aço”. Aí acorriam amigos (e outros não tão amigos), e intelectuais portugueses e estrangeiros.

Perdia-se por facécias e por contar anedotas. Ficou na memória de muitos a história passada num restaurante em Espanha, aquando de uma “tournée” da orquestra Gulbenkian, em que perguntou ao criado de mesa se havia ervilhas recheadas, ao que o criado, de pronto, lhe respondeu: “hoy, no! porque no es venido el mono”. Filipe gostou tanto da resposta que lhe deu uma avultada gorgeta. É conhecida também aquela partida que pregou a um amigo, que ía frequentemente almoçar à “Mandíbulas de Aço”. Depois de estarem bem empanturrados, ele dizia sempre ao amigo e a outros començais: “agora sabia bem um ensopado de borrego”. “Pois sabia”, respondia o amigo jocosamente. Até que um dia, num desses almoços, o ensopado apareceu mesmo como 2º prato! Sempre a magicar em brincadeiras, mandou fazer, para os amigos, canecas com a asa por dentro. Guardo uma.

Ficava feliz quando alguém mostrava por ele consideração e estima (que José Oliveira Lopes e eu lhe manifestámos sempre ao longo da vida). Lembro-me de, quando já estava internado no Instituto de Oncologia, ter recebido a visita de uma respeitável comitiva, constituída por José Saramago e sua mulher Pilar, pela cantora Carmélia mbar e pelo editor Zeferino Coelho. Ele ficou deslumbrado.

Pouco antes de adoecer gravemente, convidou-me para ir com ele ao Porto, durante um fim-de-semana para visitarmos a Casa da Música. No dia aprazado para essa visita, fomos almoçar à “Cooperativa dos Pedreiros” com o amigo comum José Oliveira Lopes (que nos acompanhou durante toda a estada no Porto) e o maestro da Orquestra do Porto. O almoço foi tão prolongado que, quando chegámos à Casa da Música, já tinha acabado a hora da visita…
Tinha três sobrinhos (duas raparigas e um rapaz, que conheci ainda adolescentes), filhos do seu único irmão. Viria a zangar-se com eles. Encontrei-os na missa de 7º dia do seu falecimento, na Basílica da Estrela. A mais velha veio ter comigo e disse-me: “ soubemos da morte do tio pelo jornal, e viemos aqui porque já lhe perdoámos”.

No dia 18 de Fevereiro de 2007, três dias depois da data em que completaria 80 anos, (não pôde ser no dia 15 porque a sala estava ocupada), Elsa Saque, José Oliveira Lopes e eu (dos seus colaboradores os mais amigos), acompanhados ao piano por Luísa da Gama Santos, participámos num concerto em sua homenagem, com o patrocínio do novo proprietário da Casa Sousa, Dr. Nuno Gonzaga Ferreira, sob a égide de “arsEventos-confraria de música” e do Gabinete de Projectos Especiais do Palácio Foz, dirigido pela Dra. Anabela Baptista. O concerto realizou-se na Sala dos Espelhos desse palácio e do programa constaram unicamente obras de Filipe de Sousa e de Fernando Lopes-Graça.

Setembro de 2007

por José Brandão, pianista

O encontro com o maestro Filipe de Sousa deu-se em Setembro de 2000 após um concerto no Museu da Música portuguesa, onde tive o gosto de o ouvir, com a violoncelista Irene Lima, nas Três Canções Populares Portuguesas e na Página Esquecida, obras do compositor seu amigo Fernando Lopes-Graça. Com 73 anos, Filipe de Sousa relembrava-nos as suas excelentes qualidades pianísticas, nomeadamente como parceiro musical em circunstâncias em que o diálogo – que pressupõe a escuta – se torna fulcral para que haja música. Foi a única vez que o ouvi ao vivo. As suas gravações, viria a conhecê-las posteriormente, e se é legítimo recordar apenas uma, destacaria a singularidade das Histórias para divertir os filhos de um artista, de Francisco de Lacerda, infelizmente não reeditadas em CD.

Da sua música conhecia anteriormente quase nada. Apenas as canções de Pessanha e de Ricardo Reis, que me incutiram a vontade de encontrar o seu autor e de estudar as restantes.

Das nossas conversas, fica a memória de um homem generoso e afável, com sentido de humor q.b., de grande vitalidade intelectual, que me fazia descobrir os seus múltiplos interesses musicais e artísticos. Recordo ainda a admirável atmosfera da sua casa em Alcainça, o imenso salão com os dois pianos, repleto de livros – uma série de preciosidades que gostava de mostrar – de partituras, de pinturas e esculturas, onde, com a soprano Teresa Gardner, lhe apresentei uma selecção das suas canções. Revelador da sua personalidade humilde como compositor, era a maior preocupação com uma transmissão clara da mensagem e do texto poéticos, do que com a “tradução” musical que realizávamos das canções. Momentos preciosos….

Algumas das suas canções são mais apelativas, tocam-nos de imediato…os dois sonetos de Pessanha, as odes de Ricardo Reis ou os poemas de amor de Éluard! São habitadas por ambientes de uma serenidade nostálgica, a par de um lirismo intenso, de traços reconhecíveis. Outras requerem, no entanto, a nossa melhor atenção. É necessário que as frequentemos durante um certo tempo, que aprendamos a desvendá-las. Desse estudo têm resultado óptimos momentos passados na recriação da sua música, da sua poesia – os dois conceitos são permutáveis!

Em meados de 2006 estava entusiasmado com a possibilidade de nos proporcionar um recital em Macau, com poesia de Camões. Acalentava ainda a esperança de revisitar o antigo território português, e já me tentava com um convite para aí visitarmos um restaurante seu predilecto…

O maestro sacode a batuta, / E lânguida e triste a música rompe… Fernando Pessoa

por José de Oliveira Lopes, barítono

Seria fácil discorrer sobre momentos esparsos de um percurso com o Filipe de Sousa superior a três décadas; mas a sua enorme e complexa personalidade merece um discurso reflexivo algo cuidado e filtrado de acordo com a consideração e amizade que mutuamente nutríamos.

Sem dúvida que fomos bons amigos. Todavia, num ou noutro aspecto, julgo que por interferência de terceiros a que também era permeável, talvez por solidão, os nossos caminhos sofreram ligeiros desvios. Daí, a inacabada gravação de um CD com obras de Lopes Graça sobre textos de Fernando Pessoa iniciada e quase concluída (em falta apenas uma melodia) há mais de dez anos. Dela e por sua iniciativa (prevendo certamente o final que se aproximava) só voltámos a falar, para que a terminássemos, cerca de ano e meio antes do agravamento definitivo da sua doença.

Lamentavelmente os responsáveis no departamento respectivo da Secretaria de Estado da Cultura não deram o necessário seguimento à pretensão, apesar das muitas insistências efectuadas, e dos inúmeros ensaios que fizemos a fim de manter a obra pronta a ser gravada, tal como esperávamos. Além do reconhecido musicólogo, maestro e compositor era um excelente pianista. Levou consigo a vontade de terminar a incumbência…

por Manuel Pedro Ferreira, musicólogo e compositor

É-me difícil resumir as impressões de duas décadas de convívio com Filipe de Sousa, em que pude testemunhar a sua proverbial generosidade, invulgar cultura, rara lucidez e extraordinária competência artística. Não será este o lugar devido para fazer o balanço do seu contributo para o conhecimento da música portuguesa do século XVIII, de que revelou, editou e disponibilizou variadas fontes, ou do seu papel como criador, que desempenhou, a partir de certo momento, de forma esporádica, mas sempre com grande qualidade técnica e sensibilidade expressiva (partindo de uma sólida base neoclássica, mas adoptando progressiva e selectivamente, linguagens mais cromáticas). A sua presença na origem da Juventude Musical Portuguesa, e a marca que deixou na direcção musical da RTP estão ainda por documentar. A sua capacidade de leitura à primeira vista de partituras de orquestra era lendária. Não pude testemunhar o seu sucesso inicial como maestro, e só uma vez o ouvi num concerto público como pianista — mas que impressão de virtuosística clareza e densidade interpretativa então me causou! Acompanhei os seus esforços mecenáticos para a publicação e divulgação de música portuguesa do século XX, nomeadamente Lopes-Graça, colocando sempre a sua própria obra num segundo plano. De facto, Filipe de Sousa recusava qualquer acto de auto-promoção; à parte o convívio com alguns amigos e jovens interessados, escondia-se do mundo musical lisboeta, dando a impressão de que receava ser contaminado pela mediocridade e pelas trocas de favores aí correntes, ou ser lembrado dos dissabores que, em tempos, alguns dos seus agentes lhe haviam causado. Evitava falar do passado; mas, por baixo do seu imenso sentido de humor, grassava uma profunda amargura, a de perceber que a rectidão e a largueza do coração, junto às maiores qualificações musicais, eram fracas defesas face à inveja, à pretensão e à maldade, e que o Portugal que ele conhecia — e é ainda, largamente, o nosso — era incapaz de reconhecer e tirar partido de quem só tinha, para dar, o melhor do género humano.

por Mário Vieira de Carvalho, musicólogo

Filipe de Sousa nasceu no Maputo, a 15 de Fevereiro de 1927. Fez os seus estudos musicais no Conservatório Nacional, tendo-se diplomado em piano (classe de Abreu Mota) e Composição (classe de Croner de Vasconcelos). Ao mesmo tempo licenciava-se em filologia Clássica pela Faculdade de Letras de Lisboa.

Em 1975 obteve o diploma de chefe de orquestra na Staatsakademie de Viena, com Swarowsky, no termo de uma bolsa de estudos que lhe permitiu trabalhar também em Munique com Mennerich e F. Lehmann e em Hilversum com Alberto Wolf. Para além da sua actividade como pianista, a quem se ficaram a dever numerosas audições portuguesas de obras de Bartók, Hindemith, Stravinsky, Schoenberg, Alban Berg, Milhaud, entre outros, e como compositor, em cuja produção se salientam a Suite de Danças para orquestra (1954), a Sinfonieta (1956), e uma numerosa obra para canto e piano, Filipe de Sousa, que se apresentou ainda como chefe de orquestra em Portugal e no estrangeiro, tem chamado a si uma importante missão: a da investigação sistemática da música portuguesa antiga, conduzindo à recuperação de várias obras-primas cujo paradeiro se desconhecia. A sua formação clássica e cultura literária são ainda componentes determinantes da personalidade do artista, que conta entre os seus poetas favoritos (e por isso os musicou) Rilke, Jean Moréas, Sebastião da Gama, Fernando Pessoa e seus heterónimos, Camilo Pessanha, Orlando de Carvalho, Manuel bandeira, Schiller, Garcia Lorca, Langston Hughes, Paul Éluard, etc..

[…] Nos Dois Sonetos de Camilo Pessanha (1950), a simples introdução de um desenho de três colcheias no piano (lá# – si – lá#), somando-se a duas outras (fá# – sol#) até então imutáveis no acompanhamento, concentra em breve episódio um movimento por graus conjuntos (encetado na dominante) que responde, por inversão, a um movimento semelhante de mínimas encetado, de início, na tónica. Esse acontecimento semantiza-se no golpe de vento a desfolhar as rosas, como se explicitará logo a seguir na frase vocal. A interrogação “Em que cismas, meu bem?” estiliza-se numa “melodia da fala” que sobe de tensão num movimento ascendente para a dominante, culminando em “As Vozes” (“Porque me calas / As vozes com que há pouco me enganavas?”). A textura harmónica altera-se radicalmente, torna-se instável, ao mesmo tempo que o já referido motivo de mínimas, até então no baixo, passa a sobressair na voz superior do acompanhamento. A esta mudança musical corresponde no poema a transição do plano da observação e do diálogo com a natureza e com “o outro” para o plano ad introspecção: a harmonia marcha “sem norte” como na imagem do poeta (“castelos doidos! Tão cedo caístes!… / Onde vamos, alheio o pensamento, / De mãos dadas?”). O retorno à natureza e ao diálogo repõe o campo harmónico inicial. A neve cai… “Em redor do teu vulto é como um véu!” – a exclamação, tensa de paixão, arranca na dominante, no registo agudo e desce depois suavemente para a tónica. Depois, é como se o universo parasse: o movimento perde velocidade, suspende-se. Fica no ar a resposta (fecho na dominante – a Halbscluβ da terminologia germânica) a interrogação: “Quem as esparze – quanta flor! – do céu, / Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?”. Entretanto, a persistência, do princípio ao fim, do motivo recorrente de mínimas onde se salienta sempre de novo o efeito descendente de si, lá#, sol#, é naturalmente a contrapartida sonora de uma imagem poética várias vezes repetida: caem pétalas, cai neve, caem os “castelos doidos”…

A coerência músico-dramatúrgica do trabalho do compositor, que, como decorre deste esboço de análise, não enjeita nem dissimula, antes assume, quando o julga conveniente, a herança clássica da harmonia funcional como parte integrante do seu pensamento musical moderno, tem ainda expressão na unidade de concepção de cada um dos ciclos de poemas. Escritos respectivamente sem si maior e sib menor, com conclusão na dominante, métrica a 3/2 e configuração melódica aparentada, os Dois Sonetos de Camilo Pessanha constituem um díptico incindível […].

Este texto foi escrito para ilustrar um disco compacto – Portugalsom, Filipe de Sousa (1927), Lisboa, Strauss – Música e Vídeo -, e foi posteriormente publicado na Revista de Cultura (edição do Instituto Cultural de Macau), nº. 26 (II Série), Janeiro/Março de 1996, número dedicado quase exclusivamente à música; na revista o artigo é um de três sobre “Três compositores e a Poesia de Camilo Pessanha”, sendo os dois outros compositores evocados Simão Barreto e Fernando Lopes-Graça;

por Simão Barreto, compositor e maestro

Personalidade multifacetada, a sua actividade vai desde pianista, compositor, maestro, conferencista, investigador e coleccionador de arte.

Como pianista foi um artista completo do seu instrumento. Fez vários recitais a solo mas, na maior parte das vezes, como acompanhante dos cantores ou instrumentistas na interpretação das suas obras.

Como compositor é autor de numerosas peças, todas caracterizadas por um cunho pessoal e originalidade inimitável, legando à posteridade um rico espólio que, de certeza, vai enriquecer o património nacional.

No domínio da investigação, muito lhe deve a cultura musical portuguesa, na medida em que descobriu em arquivos esquecidos nas caves e bibliotecas, onde proliferam as tranças e humidade, muitas obras mais esquecidas e inéditas de compositores dos séculos passados, tais como algumas sinfonias de João Domingos Bomtempo, música de câmara de Francisco António de Almeida, só para mencionar alguns nomes.

Como coleccionador adquiriu ao longo da vida um acervo invejável de obras de arte, de livros e edições raras, salientando em especial o conjunto de pinturas, serigrafias, gravuras e desenhos originais de autores modernos.

Fascinado pelo oriente e pela sua cultura, visitava amiúde Macau, onde tinha um amigo de longa data, Pe. Áureo de Castro. Conhecerem-se quando juntos estudavam no Conservatório de Música de Lisboa, sob a orientação do mesmo professor, Croner de Vasconcelos, compositor de nomeada e de rara sensibilidade e pedagogo de grande envergadura.

Lisboa, 22 de Outubro de 2007

Galeria Fotográfica

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edição novembro 2024

Coleção de Arte da FJA
no Museu do CCCM

Contribuindo para valorizar o singular e raro espólio que o Museu do Centro Científico e Cultural de Macau apresenta ao público desde a sua criação em 1999, a Fundação Jorge Álvares, no cumprimento da sua vocação estatutária, tem vindo a depositar a título permanente nesta unidade museológica nacional um conjunto de valiosas peças pertencentes à sua coleção de arte oriental. 

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